Navios Negreiros e os Trens do Holocausto

 

Israel Blajberg (*)

 

 

E existe um povo que a bandeira empresta
P'ra cobrir tanta infâmia e covardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?!...

Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,

Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!...

do poema

Navio Negreiro

Castro Alves

 (1847-1871)

 

 

Aparentemente encerrado o didático episodio envolvendo o carro alegórico do Holocausto, que a final não adentrou a passarela (pelo menos no formato concebido originalmente), restou a indagação: 

 

por que as alegorias, novelas e outras manifestações culturais ou artísticas  sobre a escravidão não costumam merecer a mesma oposição ?

 

Os judeus, como os negros, também foram escravos. Assim como na colônia de Portugal os negros deram o suor e até a vida no trabalho duríssimo sob o chicote do feitor, o mesmo aconteceu no Egito dos Faraós com os Hebreus.

 

Entretanto, dos negros os senhores queriam apenas o trabalho forçado, trazendo-os da África remota nos navios negreiros. Dos judeus, os nazistas extraíram não só o trabalho, mas a própria vida, levando-os nos trens do holocausto para as câmaras de gás.  As condições sub-humanas eram semelhantes, nos navios e nos trens.

 

Dos antigos escravos negros, já não está mais aqui a geração do deserto, que viveu a época quando a Princesa Isabel decretou a Lei Áurea, apagando de vez a nódoa infame que empanava vergonhosamente a cidadania nacional.

 

Provavelmente, os descendentes das ultimas gerações que suportaram estoicamente a escravidão hoje são tri-netos, tataranetos, raros bisnetos, raríssimos netos, se existirem.

 

Quanto aos judeus não ocorre o mesmo. Milhares de sobreviventes do Holocausto, os modernos escravos brancos que trabalharam para o Reich diabólico e seus acólitos ainda vivem, com idades a partir do entorno de 70 anos. Nas famílias judaicas de hoje é comum existirem filhos e netos de vitimas que pereceram no Holocausto.

 

Tentando responder a pergunta inicial, queremos crer que o fator tempo contribuiu em muito para que as alegorias sobre a escravidão sejam acolhidas sem maior oposição. A dor dos que viveram aquela época veio se dissipando à medida que surgiam as novas gerações, que não viveram aquele infortúnio.

 

Assim, pela lei natural das coisas o mesmo sucederá no futuro com os descendentes das vitimas do Holocausto, e um dia talvez não esteja aqui mais ninguém que desejasse obstaculizar uma alegoria como a da Viradouro, apesar do forte impacto.

 

A mesma diluição progressiva da memória no tempo, ocorreu com a Guerra da Tríplice Aliança (Guerra do Paraguay – 1865 a 1870) e a Campanha da FEB – Força Expedicionária Brasileira, 1944/45 que já praticamente caíram no esquecimento popular, a menos de alguns grupos específicos da sociedade, em geral militares e historiadores.

 

Nenhum agrupamento humano tem o monopólio da dor. Desde que Abel levantou a mão sobre Caim, lamentavelmente toda a humanidade em todas as épocas sofreu com um ataque do seu semelhante, com raríssimas exceções. De ciganos a judeus, de negros a Testemunhas de Jeová, de armênios a comunistas, ruandeses, sudaneses, simples dissidentes políticos, homossexuais, católicos, budistas,a lista é infindável.

 

Certo é que o mundo silenciou (e fechou as portas da salvação) para os Holocaustos Negro e Judeu.

 

Também certo é que um dia acabará a tristeza e o lamento pelas guerras sem fim.

 

A Bíblia Sagrada nos ensina pelas palavras dos Profetas Isaias, Ezequiel e Osias, que virá o tempo quando as espadas e lanças se transformarão em arados, uma nação não mais levantará a espada contra outra nação, nem aprenderão mais a guerra, os animais selvagens serão mansos, o lobo e o cordeiro habitarão juntos.

 

Enquanto isso, resta-nos observar com reverencia as homenagens devidas aos que sofreram, e de tudo isso tirar um ensinamento.

 

As datas consagradas a Zumbi – Dia da Consciência Negra, 22 de novembro, a Princesa Isabel, a Redentora, 13 de maio, Dia da Abolição da Escravatura, Dia Internacional em Memória do Holocausto, fixado pela ONU em 27 de janeiro, Dia da Vitória Aliada na Europa, 8 de maio, Dia da Recordação dos Heróis e Vítimas do Holocausto, em abril junto com o aniversário do Levante do Gueto de Varsóvia, entre outras, são datas que devem ser observadas não só pelas comunidades negra e judaica, mas por toda a nação brasileira, como indicativo da tolerância e da convivência fraterna que desejamos entre todos os cidadãos acolhidos sob o palio sagrado verde-e-amarelo.

 

 (*) iblaj@telecom.uff.br

Navio Negreiro

Era um sonho dantesco... o tombadilho,

Tinir de ferros... estalar do açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...

Negras mulheres, levantando às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras, moças... mas nuas, assustadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs.

Um de raiva delira, outro enlouquece...
Outro, que de martírios embrutece,
chora e dança, ali.

Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus...

Quem são estes desgraçados
Que não encontram
em vós
Mais
que o rir calmo da turba

Dize-o tu, severa musa,
Musa libérrima, audaz!

São os filhos do deserto
Onde a terra esposa a luz.
Onde voa em campo aberto
A tribo dos homens nus...

São os guerreiros ousados,
Que com os tigres mosqueados
Combatem na solidão...
Homens simples, fortes, bravos...
Hoje míseros escravos
Sem ar, sem luz, sem razão...

Lá nas areias infindas,
Das palmeiras no país,
Nasceram crianças lindas,
Viveram moças gentis...

Passa um dia a caravana
Quando a virgem na cabana
Cisma das noites nos véus...
...Adeus! ó choça do monte!...
...Adeus! palmeiras da fonte!...
...Adeus! amores... adeus!...

Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus...

Ó mar, por que não apagas
de tuas vagas
De teu manto este borrão?
Astros! noite! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!...

E existe um povo que a bandeira empresta
P'ra cobrir tanta infâmia e covardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?!...

Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,

Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!...

...Mas é infâmia demais...
Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo...
Andrada! arranca este pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta de teus mares!