CASAMENTO JUDEU

- kidushin -

Semira Adler Vainsencher
 

Pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco

 

 

      

Simhat Torah

 

Antes da 2ª. Guerra Mundial (1938-1945), milhares de hebreus, oriundos da Europa Oriental - Polônia, Romênia, Áustria, Alemanha e Rússia - deixaram seus locais de origem e fugiram do anti-semitismo e do nazismo. Os imigrantes vieram para o Nordeste do Brasil - Pernambuco, em especial - e lá chegando edificaram escola, sinagoga, clube e cemitério judeu, visando manter seus costumes e tradições, conforme os preceitos das leis mosaicas. Uma destas leis diz respeito ao casamento.

 

De acordo com os judeus, casar e procriar representa praticamente um dever.

No Gênesis 2:18 e 2:24, lê-se:

 

E disse o Senhor Deus: não é bom que o homem esteja só: façamos-lhe uma ajudante semelhante a ele. Por isso deixará o homem a seu pai e a sua mãe, e se unirá a sua mulher: e serão dois numa mesma carne.

 

Os hebreus acreditam, inclusive, que, no dia do matrimônio, Deus perdoa os noivos por transgressões eventuais cometidas no passado, a fim de que possam começar a vida conjunta em estado de pureza.

 

A família representa a força espiritual do povo judeu e, se comparada ao lar, a própria sinagoga desempenha um papel secundário. Por sua vez, a base da família é o casamento (denominado kidushin, em hebraico, que significa consagração, ocasião sagrada). Cabe salientar que os hebreus ultra-ortodoxos só aceitam o celibato quando o homem resolve dedicar sua vida ao estudo da Toráh. E, mesmo que seja por esse objetivo, o celibato não é encorajado.

No livro de Provérbios 18:22, encontram-se as seguintes palavras do rei Salomão:

 

Aquele que achou uma mulher boa achou o bem: e receberá do Senhor um manancial de alegria.

 

Logo, um homem que não possuir uma esposa, ficará privado de alegria. Em tempos passados, era comum a presença de um(a) casamenteiro(a) (shadchan) junto às famílias. Essa pessoa arranjava um(a) pretendente para o(a) jovem solteiro(a), e intermediava o enlace nupcial.

 

Até o século II d.C. estava em vigor o casamento levirático (yibúm). Segundo o Deuteronômio 25:5-6, um homem deveria esposar a viúva de seu irmão se, porventura, ela não tivesse tido filhos no matrimônio. Isto ocorria para que os futuros filhos do casal pudessem ter o sobrenome do falecido, e este sobrenome não caísse no esquecimento.  Curiosamente ou não, estabelecia-se um prazo de três meses, para que uma mulher voltasse a casar de novo, caso enviuvasse ou se divorciasse. Desta maneira, ficava evidente a paternidade da criança que viesse a nascer, após um novo casamento. Isto é, se a criança nascesse sete, oito ou nove meses depois do enlace matrimonial, poderia haver dúvidas em relação à paternidade. No entanto, esperando-se três meses para concretizar o casamento, as dúvidas eram eliminadas.

 

Antes da cerimônia e perante duas testemunhas, o casal assinava um documento escrito em aramaico (ketubá),

 

 

 

 que era lido em voz alta, e estabelecia as obrigações do homem, a partir do enlace matrimonial. Sem essa espécie de contrato (que ficava sob a guarda da noiva) o casal não podia viver junto, debaixo do mesmo teto. Além de significar a união física e emocional, o documento representava, também, um compromisso moral e legal, mediante o qual o marido tinha por obrigação prover alimentos, abrigo e roupas para a esposa, e ser atencioso frente às suas necessidades emocionais. A proteção dos direitos da mulher possuía tamanha relevância que o casamento só era formalizado após a leitura completa do contrato nupcial. E, somente em caso de morte, ou se houvesse um divórcio religioso, a ketubá podia ser dissolvida.

 

Em um casamento hebreu, há vários rituais significativos, que simbolizam a beleza do relacionamento entre marido e mulher, suas obrigações mútuas como casal, as obrigações que têm em relação ao povo judeu, e que dão sentido ao propósito mais profundo do casamento.

 

Logo na entrada, são distribuídos solidéus para os homens (denominados kipot, em hebraico; e, iarmulkes, em iídishe). Segundo a religião mosaica, todos precisam cobrir a cabeça com uma kipá.

 Acredita-se que o costume seja proveniente da época em que os judeus viviam na Babilônia. No entanto, a referência mais antiga está contida no Êxodo 28:4, onde consta que o objeto fazia parte da vestimenta do Sumo Sacerdote. Cobrir a cabeça representa uma atitude piedosa e de respeito a Deus (midat chassidut), para lembrar que Ele está acima de tudo e de todos. O rosto da noiva, por outro lado, vem coberto por um véu (badekn die kalla, em iídishe). De um modo geral, ao cobrir a cabeça, a pessoa demonstra uma atitude de reverência frente a Deus.

 

 

 

Um casamento é realizado, sempre, debaixo de uma tenda ou pálio nupcial (chupá), se pronuncia "rupá".

 

 

preferencialmente a céu aberto. A tenda simboliza a futura casa a ser construída e dividida pelo casal, e a proteção do novo lar. A chupá é aberta de todos os lados, a fim de que os nubentes possam receber os amigos e parentes com muita hospitalidade, conforme a bíblica tenda de Abraham e Sarah; e deve ser montada ao ar livre, sob as estrelas, para que os futuros filhos possam vir como as estrelas no firmamento.

 

Chegada do noivo

 

 

         O noivo (chatan) é quem primeiro chega à chupá. Ele fica aguardando a presença da noiva (kaláh), que vem junto com seus pais. Isto significa que ela realmente deseja se casar. A noiva precisa se posicionar ao lado direito do noivo, o que remete a uma citação dos Salmos 45:10:

 

Entre tuas amadas estão as filhas do rei; à tua direita, uma rainha, ornada com o ouro de Ofir.

 

De acordo com a tradição hebréia, a noiva é uma rainha e, o noivo, é um rei. Em alguns casamentos, observa-se ainda que a noiva dá sete voltas em torno do noivo (hakafot). Isso é explicado da seguinte maneira: como Deus criou o mundo em sete dias, tudo se passa, em nível simbólico, como se a futura esposa - uma das criações divinas - iniciasse a construção do novo lar.

 

         Após dar as boas vindas ao casal, o rabino (ou a pessoa que conduz a cerimônia religiosa) canta o Mi Adir - um cântico de louvor a Deus - e solicita-Lhe proteção aos nubentes, por meio das bênçãos. A seguir, o noivo, coloca a aliança (tabát) no dedo indicador da mão direita da noiva, enquanto fala:

 

Eis que tu és consagrada a mim com este anel, de conformidade com a Lei de Moisés e de Israel.

 

 

 

Por que o anel é colocado no dedo indicador? Este dedo é o mais proeminente de todos, sendo utilizado para apontar, e existe a crença de que, dele, corre uma veia que segue direto para o coração. A jóia é transferida, posteriormente, para o dedo anelar da mão esquerda da noiva.

 

Vale ressaltar que a aliança deve ter o formato de um círculo (sem começo nem fim), ser fabricada com ouro puro, e não pode apresentar qualquer desenho, detalhe ou ornamento. Em nível simbólico, é esperado que o enlace nupcial seja similar àquela jóia: simples, belo e isento de discórdias. A aliança representa o ciclo da vida, estando também relacionada à criação do mundo.

 

Em seguida, são servidas duas taças de vinho aos nubentes. Durante a cerimônia pela santificação do matrimônio, sobre as taças de vinho, são recitadas as sete bênçãos (Nessuin Shevah Brachot) que simbolizam os sete dias da criação do mundo, a transformação da matéria para formar o ser humano, assim como a criação da mulher, que assegura a continuidade da espécie. O vinho é símbolo de alegria, estando associado à reza de santificação (Kidush), que é recitada no Dia do Descanso (Shabat) e demais festividades hebréias.

 

 

Os noivos provam um pouco de vinho, o rabino bebe o restante que fica nas taças e embrulha uma delas em um pano. Em seguida, coloca-se o embrulho no chão e, segundo o ritual, com o pé direito, o noivo deve pisar nele com força, visando quebrar a taça. Existem várias explicações para tal simbolismo. Uns ressaltam que isso serve para lembrar o fato de que somos mortais e devemos casar e multiplicar; outros reiteram que a quebra da taça simboliza a tristeza sentida pelos judeus, frente à destruição do Templo em Jerusalém, (Salmo 137); há quem explique que o ritual simboliza a ruptura dos noivos com a vida passada; e alguns dizem que o ruído dos estilhaços de vidro serve como recordação da dura perda da independência nacional judaica, nas mãos dos romanos, em 70 D.C., assim como a lembrança de que a felicidade não é eterna e o casal deve estar preparado para enfrentar as eventualidades que surjam na vida.

 

A seguir, um ambiente festivo substitui a atmosfera solene da chupá e todos confraternizam com alegria e felicidade a união do casal. Os convidados costumam dizer mazal tov (abençoados sejam) e jogar arroz nos nubentes. Como este cereal simboliza a fertilidade, o casal deverá frutificar e se multiplicar (Gênesis 1:28). No meio de uma roda, os noivos sentam em duas cadeiras, e os familiares e amigos os levantam e todos dançam ao som do Hava Naguila, a popular canção judaica.

Nos casamentos hebreus, na Região Nordeste, costuma-se servir vários pratos deliciosos da culinária judaica askenazita (cozinha típica dos judeus oriundos do Norte da França, da Europa Central e Europa Oriental), tais como herings (arenques com molho vinagrete) com pão; guefilte fish (bolinhos de peixe, moídos e cozidos em molho de cebola); beigaleh (folheados de batata e de queijo, com molho de cebola); honik leikeh (bolo de mel); entre tantos outros. No final da festa, sempre se distribui o fludn, o tradicional doce de casamento judeu, uma iguaria feita com massa folheada recheada com nozes, ameixas, frutas cristalizadas, passas e doces em calda de frutas tropicais diversas. Todos esses pratos podem ser saboreados, anualmente, no mês de novembro, durante o Festival da Cultura Judaica, que é comemorado na conhecida Praça do Arsenal, situada no Recife Antigo, no bairro do Recife, a poucos metros da Sinagoga Kahal Zur Israel (ou Congregação Rochedo de Israel), a primeira sinagoga das Américas.

Em seu novo lar, o casal tem por obrigação fixar uma mezuzá (um pequeno estojo cilíndrico que contém um pergaminho enrolado com os versículos VI, 4-9 e XI, 13-21 do Deuteronômio) no umbral direito da porta de entrada da casa. Tal objeto ritual marca a presença de Deus em um lar judeu. E, antes de se entrar em casa ou ao sair desta, deve-se sempre beijar a mezuzá.

         O matrimônio entre um judeu e um gentio não é aceito pelo judaísmo. Isto advém do Deuteronômio 7:3:

Não é permitido que um hebreu se case com membros de nações pagãs.

Tal medida foi adotada pelos rabinos, a partir do século II D.C. A legislação preventiva objetivou evitar que o caráter monoteísta da nação hebréia se diluísse, havendo maior deterioração da observância judaica, já que isso representa um fator de assimilação e uma ameaça à manutenção de sua identidade. Em casos de casamento misto, a conversão à religião mosaica é recomendada, para o noivo ou noiva que sejam gentios.

É importante dizer que o divórcio (guet) é permitido entre os hebreus. No entanto, o Tribunal Religioso (Beit Din) considera o casamento uma aliança tão sagrada que pondera muito antes de realizá-lo. Desse modo, sempre se tenta encorajar a reconciliação do casal, incentivando marido e mulher, inclusive, a casar novamente após a separação legal. Segundo esse Tribunal, basta um mínimo de esforço, humildade e compreensão, de ambas as partes, para que um casamento volte a dar certo. Além do mais, se, a despeito de todas as falhas, Deus consegue suportar as pessoas, com muito mais facilidade cada um deve ser capaz de perdoar e aceitar as falhas do cônjuge, de abaixar um pouco o orgulho sentido, e de reconhecer os próprios erros. Segundo os sábios, quando um matrimônio é dissolvido, escorrem lágrimas até do Altar do Templo Sagrado, já que esse Altar simboliza a união eterna e indissolúvel entre Deus e o povo de Israel.

         O casamento, portanto, é fortalecido dia a dia, através do entendimento entre marido e mulher, dos limites de cada um, companheirismo, amizade, amor, carinho, respeito e cumprimento das leis de pureza familiar. Estes são os principais valores que consagram um casamento judeu.

 

 

Recife, 17 de dezembro de 2008.

 

 

FONTES CONSULTADAS:

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KOLATCH, Alfred J. Livro judaico dos porquês. 5. ed. São Paulo: Editora e Livraria Sêfer, 2007.

 

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Semira Adler Vainsencher

semiraadler@gmail.com

Arte final de: Rivkah Cohen